Releitura


As inovações de Veríssimo na releitura da obra “Noite de Reis”, de William Shakespeare

Chacrinha foi feliz ao dizer nos anos 80 que “nada se cria, tudo se copia”. Apesar de a frase parecer engraçadinha, e, ao mesmo tempo maldosa, querendo dizer que não existem mais mentes criativas, este fenômeno ocorre na literatura de uma forma um pouco diferenciada. Um exemplo é o livro “A décima segunda noite”, de Luís Fernando Veríssimo.

Capa do livro de Veríssimo

Esta obra faz parte da coleção Devorando Shakespeare da Editora Objetiva e é uma releitura de “Noite de Reis”, de William Shakespeare. Os dois livros falam sobre o dia 6 de janeiro, a noite de reis, que acontece  doze  dias após o Natal. Esta data, na tradição britânica, é o dia em que os patrões presenteiam os empregados e também o derradeiro momento dos  festejos natalinos.

Shakespeare criou uma tragicomédia, mistura de tragédia com comédia, a respeito desta data. Em uma ilha fictícia, chamada Illyria, vive um duque chamado Orsino que é apaixonado por Olívia, uma dama que decidiu não amar ninguém e viver o luto pela morte do seu irmão. Neste meio tempo, somos apresentados a Viola, que chega à ilha depois de sobreviver a um naufrágio. Desamparada por acreditar que seu irmão gêmeo, Sebastian, tenha morrido afogado, ela se disfarça de homem e nomeia como Cesário, para preservar a sua identidade e passa a trabalhar para Orsino, por quem se apaixona. Essa rede de amores não correspondidos aumenta quando Cesário (Viola) vira o mensageiro entre as juras de amor de Orsino e as recusas de Olívia, que se encanta pelo jovem rapaz.

Pocket book - Noite de reis

Mas o enredo não para por aqui. Há outros personagens na história, como o tio de Olívia, Sir Toby e sua empregada Maria que resolvem aprontar com Malvolio, serviçal apaixonado pela patroa Olívia. Eles enviam uma carta em nome da chefa e fazem o moçoilo acreditar que ela corresponde ao sentimento e que o amor carnal será consagrado na noite de reis. E no meio desta trama toda, há um elemento típico da comédia: o bobo que faz rir. Nesta obra, Feste está presente para garantir a malícia e ambiguidade até o fim do enredo.

O amigo de Sir Toby, Sir Andrew também é apaixonado por Olívia e desafia Sebastian, achando que ele é Cesário, quando esse reaparece na história junto com Antônio, inimigo de Orsino. Olívia também encontra o gêmeo desaparecido e achando que é Cesário, o pede em casamento. Orsino fica furioso e visita a sua amada junto com Viola, disfarçada de mensageiro. Neste momento, descobre-se a verdadeira identidade de Cesário e toda a rede de amores não correspondidos se desfaz. Shakespeare termina a peça com um final feliz e com três casamentos: Olívia com Sebastian, Viola com Orsino e Maria com Toby.  A história é assim mesmo: confusa e toda entrelaçada, mas de modo que cada relacionamento tenha a sua explicação e algum sentido no final. Ficou confuso? Lembre-se de “A Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade, onde  “João amava Teresa que amava Raimundo/que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ que não amava ninguém./ João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,/Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/que não tinha entrado na história.” A obra de Shakespeare é bem por este caminho, pode até ser que tenha servido de base para o poema de Drummond.

Luís Fernando Veríssimo reescreveu esta obra confusa de uma maneira diferente. A começar pelo gênero: enquanto Shakespeare é teatro, Veríssimo partiu para o romance. Ao contrário da estrutura fixa do roteiro teatral, “A décima segunda noite” é como se fosse a transcrição de um depoimento gravado de um papagaio chamado Henri e isso é dado de forma que seja possível entender que haja uma conversa entre leitor e narrador. Sem contar que é muito mais fácil ler esta obra por causa da linguagem simples, do estilo verbal e da diagramação do livro: espaçamento e letras grandes. Além disso, os capítulos tem o mesmo tamanho, como se cada um fosse uma fita gravada. Logo, o final de cada parte é meio interrompido pelo gravador, mesmo que o papagaio não tenha concluído o raciocínio e isto aumenta o grau do humor, pois muitas vezes Henri fala alguns palavrões e se irrita com o leitor.

Os nomes são abrasileirados e também há algumas mudanças na história. Ela se passa em Paris e Illyria é um salão de cabeleireiros cujo dono é o francês Orsino. Henri, além de narrador, é personagem e enfeite do salão e das festas além de estar apaixonado por Violeta, que na obra original é Viola. Violeta se veste como homem, César (Cesário) para ser recepcionista no salão de cabeleireiro. Há novos protagonistas como Negra e suas três flores que ajudam imigrantes brasileiros a viverem na França. Aliás, ao contrário da obra elisabetana, tudo se passa com brasileiros exilados na capital francesa de modo que a cultura brasileira esteja presente a partir da comemoração do carnaval, com as comidas típicas e comportamento dos personagens.

A estrutura da narrativa também modifica a ordem dos acontecimentos e Henri introduz uma nova cena à história original: o caso da Santa que era Santo. Em poucas palavras, trata-se de um contrabando de pedras preciosas em que o irmão falecido de Olívia era o responsável pela ida e vinda de santos recheados de dinheiro para auxílio dos exilados. Neste caso, foi colocada uma saia em cima da roupa de José para poder disfarçar as pedras, mas este santo é “perdido” e a confusão se instaura entre os exilados e a rede de amores não correspondidos. Mais para frente descobrimos quem é o dono da fortuna.

Os fatos são os mesmos: Violeta (Viola) é apaixonada por Orsino que é apaixonada por Olívia que ama César (Cesário), mas se casa com Sebastião, Sebastian na obra original. Malvolio também passa por uma peça pregada por Maria, no caso prima distante de Olívia, Festinha e Arroto (Sir Toby), mas o desfecho da história muda. Enquanto em Shakespeare, Malvolio consegue provar que não é louco e fica sozinho, em Veríssimo, ele “ataca” Maria e os dois têm uma noite de amor durante a décima segunda noite.

É tão confuso explicar quanto ler o que acontece, mas a obra de Veríssimo, por ser mais atual, facilita o  entendimento com a sua linguagem mais clara. Porém, sem ter a referência de Shakespeare a história se perde no seu sentido.   Pode parecer complicado querer comparar tantos detalhes de duas obras que são parecidas ao mesmo tempo em que são diferentes, por isso vale a pena ler as duas, a original primeiro e depois a atual, para entender que grande parte das novas obras é muitas vezes baseada nas tragédias e comédias gregas e elisabetanas.